quinta-feira, 18 de setembro de 2008

a civilização, a desobediência civil e uma sociedade secreta

Confesso que a civilização me enerva. Toda essa coisa de organizar e sistematizar uma bagunça generalizada, que é nosso país. Toda a burocracia necessária para nos dar uma justificativa para a existência da enorme máquina e todos os aspectos da tecnocracia apliacada.
Na biblioteca da faculdade uma fila com um curral em zigue zague para que caibam mais pessoas em menor espaço. Para comprar um chocolate, mais fila. Nos bancos é preciso retirar uma senha e sentar-se à espera, já que ninguém agüenta ficar duas horas em pé, e a moderna política dos bancos visa o bem estar de seus clientes.
Aqui uma observação curiosa sobre as filas de banco contemporâneas. Os mais espertos quando chegam a uma dessas filas, ao invés de sentar-se como todos os outros cidadãos comuns, dirige-se a um dos outros malandros que estão em pé, encostados em um canto qualquer, e iniciam uma conversa descontraída. Os assuntos preferidos são a safadeza do banqueiro, futebol, o tempo, mulher ou as contas a pagar. Não necessariamente nessa mesma ordem. Esse malandro que está encostado na parede certamente já contactou-se com outro malandro quando chegou e tem uma preciosa senha guardada. Daí aquela senha troca de mãos e sempre haverá uma senha disponível para um outro malandro que chegar a seguir. Às vezes nada disso é necessário e um malandro simplesmente vai até o caixa com a conta a pagar do outro malandro. Costuma-se economizar metade do tempo.
Meus contatos com esse submundo de office boys, contínuos e desocupados em geral começou quando eu ainda era adolescente e comecei a trabalhar como boy em algumas empresas. Havia um fliperama obscuro numa ruela bem no centro da cidade, perto dos camelôs, onde as fichas custavam dez centavos e onde nos reuníamos. O ambiente era suspeito, mas reinava um clima de paz e camaradagem. As pessoas de bem costumavam acelerar o passo ao passar em frente à loja mal iluminada.
Alguns personagens de lá são lendários. Tinha um negão que trabalhava num açougue e estava sempre lá com seu uniforme branco sujo de sangue. Ele cheirava a sangue. Seu jogador tinha uma grande espada que lançava o sangue dos adversários para todos os lados. Era quase invencível. Estava sempre sorrindo e sacaneava a todos. Devia ser dono do açougue, porque estava sempre no fliper.
Ali operava uma verdadeira base de operações onde os mensageiros da cidade trocavam informações e organizavam-se para que cada um fosse ao menor número de bancos possíveis. Documentos e cheques trocavam de mão com facilidade. Só pagamentos em dinheiro não entravam no jogo. Resolvíamos tudo rapidamente e voltávamos pro fliper para gastar o resto da tarde.
O brasil não é um país estranho. Aprendemos a dar risadas de nós mesmos e não conseguimos fazer outra coisa. Temos tanto desrespeito pelas leis e pelas autoridades, que não nos importamos com elas, fazemos como se elas não existissem. Nos recusamos a nos preocupar-mos.
Mas, voltando ao assunto, toda essa vida moderna acaba comigo. Ambientes refrigerados, escadas rolantes, barulho, fumaça, poeira, carros, cimento e uma multidão de pessoas empilhadas vivendo uma farsa. Tudo isso me agride e toma minhas forças.
Conheço meu temperamento difícil. Sinto-me quase como Thoureau, que duzentos anos atrás exilou-se numa cabana às margens de um lago no meio de um enorme bosque por alguns anos e afirmou que no caso de uma guerra entre os homens e os ursos, lutaria ao lado das feras.
Hoje o mundo inteiro é uma pequena ilha super povoada e não há mais lugar para romantismo.
Numa época em que ainda era possível afastar-se das garras da sociedade e do estado, recusou-se a reconhecer a legalidade do estado e foi várias vezes punido por isso.
Num livro chamado “a desobediência civil”, ele dizia:


“De que modo convém a um homem comportar-se em relação ao atual governo americano? Respondo que ele não poderá associar-se a tal governo sem desonra. Não posso, por um instante sequer, reconhecer como meu governo uma organização política que é também governo de escravos.
(...)
A grande maioria dos homens serve ao estado desse modo, não como homens propriamente, mas como máquinas, com seus corpos.
(...)
Leis injustas existem: devemos contentar-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou trangredi-las desde logo? Num governo como este, os homens geralmente pensam que devem esperar até que a maioria seja persuadida a altera-las. Pensam que, se resistissem ao governo, o remédio seria pior que o mal.
(...)
A lei jamais tornou os homens mais justos, e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem intencionados transformam-se diariamente em agentes da injustiça.
(...)
A única obrigação que tenho direito de assumir é a de fazer a qualquer tempo aquilo que considero direito.
(...)
Não é dever de um homem, na verdade, devotar-se à erradicação de qualquer injustiça, mesmo a maior delas, pois ele pode perfeitamente estar absorvido com outras preocupações. Mas é seu dever, ao menos, lavar as mãos em relação a ela e, se não quiser mais leva-la em consideração, não lhe dar seu apoio em termos práticos.
(...)
Se a injustiça fz parte do atrito necessário à máquina do governo, deixemos que assim seja. Talvez amacie com o passar do tempo, e certamente a máquina irá se desgastar. Se a injustiça tem uma mola, polia, cabo ou manivela exclusivamente para si, talvez possamos questionar se o remédio não será pior que o mal. Mas se ela for de natureza tal que exija que nos tornemos agentes de injustiça para com os outros, então proponho que violemos a lei.
(...)
Não pago imposto individual há seis anos. Por causa disso, certa vez, fui colocado na cadeia por uma noite.
(...)
Encontro diretamente, frente a frente, esse governo americano, ou seu representante, o governo do estado, uma vez por ano –não mais- na pessoa do coletor de impostos. Este é o único modo pelo qual um homem em minha situação pode necessariamente encontrá-lo. E então ele afirma claramente: “reconheça-me.” E a maneira mais simples, mais efetiva e, no atual estado de coisas, mais indispensável de tratar com ele sobre este assunto, de expressar nossa pouca satisfação e carinho em relação a ele, então, é nega-lo
(...)
Se alguém me dissesse que esse é um mau governo porque tributa determinadas mercadorias estrangeiras trazidas a seus portos, é bastante provável que eu não movesse nenhuma palha a respeito, já que não posso passar sem eles. Todas as máquinas têm seu atrito, e isto possivelmente tem um lado bom que compensa o lado ruim. De qualquer modo, seria bastante nocivo fazer muito alvoroço por causa disso. Mas quando o atrito chega ao ponto de controlar a máquina, e a opressão e o roubo se tornam organizados, digo que não devemos mais ficar preso a tal máquina.”



Na mesinha num canto do quarto há uma travessa retangular feita em madeira e pedra, onde ficam as velas acesas. O fogo me atrai. Às vezes, a cera acumulada e os palitos de fósforo usados tornam-se verdadeiras fogueiras que durante muitos minutos cortam a escuridão da noite fria. Faço as pazes com meus deuses e retomo minhas forças.

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