numa estalagem da estrada
Macário (falando pra fora)
olá, mulher da venda! ponham-me na sala uma garrafa de vinho, façam-me a cama e mandem-me ceia: palavra de honra que estou com fome! dêem alguma ponta de charuto ao burro que está suado como um frade bêbado! sobretudo não esqueçam o vinho!
uma voz
há aguardente unicamente, mas boa.
macário
aguardente! pensas que sou algum jornaleiro? andar seis léguas e sentir-se com a goela seca. ó mulher maldita! aposto que também não tens água?
a mulher
e pura, senhor! corre ali embaixo uma fonte que é limpa como o vidro e fria como uma noite de geada. (sai)
macário
eis aí o resultado das viagens. um burro frouxo, uma garrafa vazia. (tira uma garrafa do bolso). conhaque! és um belo companheiro de viagem. és silencioso como um vigário em caminho, mas no silêncio que inspiras, como nas noites de luar, ergue-se às vezes um canto misterioso que enleva! conhaque! não te ama quem não te entende! não te amam essas bocas feminis acostumadas ao mel enjoado da vida, que não anseiam prazeres desconhecidos, sensações mais fortes! e eis-te aí vazia, minha garrafa! vazia como uma mulher bela que morreu! hei de fazer-te uma nênia.
e não ter nem um gole de vinho! quando não há o amor há o vinho; quando não há o vinho há o fumo; e quando não há amor, nem vinho, nem fumo há o spleen. o spleen encarnado na sua forma mais lúgubre naquela velha taverneira repassada de aguardente que tresanda!
(entra a mulher com uma bandeja).
a mulher
eis aqui a ceia.
macário
ceia! que diabo de comida verde é essa? será algum feixe de capim? leva para o burro.
a mulher
são couves...
macário
leva para o burro.
a mulher
é fritada em toucinho...
macário
leva para o burro com todos os diabos!
(atira-lhe o prato na cabeça. a mulher sai. macário come).
um desconhecido (entrando)
boa noite, companheiro.
macário (comendo)
boa noite...
o desconhecido
tendes um apetite!...
macário
entendo-vos. quereis comer? sentai-vos. quereis conversar? esperai um pouco.
o desconhecido
esperarei. (senta-se).
macário (comendo)
parece-me que não é a primeira vez que vos encontro. quando a noite caía, ao subir da garganta da serra...
o desconhecido
um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a bota por vossa perna...
macário
tal e qual - por sinal que era fria como o focinho de um cão.
o desconhecido
era eu.
macário
há um lugar em que estende-se um vale cheio de grama. à direita corre uma torrente que corta a estrada pela frente... há uma ladeira mal calçada que se perde pelo mato...
o densconhecido
aí encontrei-vos outra vez... a propósito, não bebeis?
macário
pois não sabeis? essa maldita mulher só tem aguardente e eu que sou capaz de amar a mulher do povo como a filha da aristocracia, não posso beber o vinho do sertanejo...
o desconhecido
(tira uma garrafa do bolso e derrama vinho no copo de macário).
ah!
macário
vinho! (bebe). à fé que é vinho de madeira! à vossa saúde, cavalheiro!
o desconhecido
à vossa! (tocam os copos).
macário
tendes as mãos tão frias!
o desconhecido
é da chuva. (sacode o ponche). vede: estoumolhado até os ossos!
macário
agora acabei. conversemos...
o desconhecido
viste-me duas vezes. eu vos vi ainda outra vez. era na serra, no alto da serra. a tarde caía, os vapores azulados do horizonte se escureciam. um vento frio sacodia as folhas da monhtanha e vós contempláveis a tarde que caía. além, nesse horizonte, o mar como uma linha azul orlada de escuma e de areia - e no vale, como bando de gaivotas brancas sentadas num paul, a cidade que algumas horas antes tinheis dfeixado. daí vossos olhares se recolhiam aos arvoredos que vos rodeavam, ao precipício cheio das flores azuladas e vermelhas das trepadeiras, às torrentes que mugiam no fundo do abismo, e defronte víeis aquela cachoeira imensa que espedaça suas àguas amareladas, numa chuva cheia de escuma, nos rochedos negros do seu leito. e olháveis tudo isso com um ar perfeitamente romântico. sois poeta?
macário
enganai-vos. minha mula estava cansada. sentei-me ali para descansá-la. esperei que o fresco da neblina a reforçasse. nesse tempo divertia-me em atirar pedras no despenhadeiro e contar os saltos que davam.
o desconhecido
é um divertimento agradável.
macário
nem mais nem menos que cuspir num poço, matar msocas, ou olhar para a fumaça de um cachimbo... a minha mala... (chega à janela). ó mulher da casa! olá! ó de casa!
uma voz (de fora)
senhor!
macário
desate a mala de meu burro e traga-m´a aqui...
a voz
o burro?
macário
a mala, burro!
a voz
a mala com o burro?
macário
amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca.
a voz
o senhor é o moço que chegou primeiro?
macário
sim. mas vai ver o burro.
a voz
um moço que parece estudante?
macário
sim. mas anda com a mala.
a voz
mas como hei-de ir buscar a mala? quer que vá a pé?
macário
esse diabo é doido! vai a pé, ou monta numa vassoura como tua mãe!
a voz
descanse, moço. o burro há de aparecer. quando madrugar iremos procurar.
outra voz
havia de ir pelo caminho do hnô quito. eu conheço o burro...
macário
e minha mala?
a voz
não vê? está chovendo a potes!
macário (fecha a janela).
malditos!(atira com uma cadeira no chão).
o desconhecido
que tendes, companheiro?
macário
não vedes? o burro fugiu...
o desconhecido
não será quebrando cadeiras que o chamareis.
macário
porém a raiva...
o desconhecido
bebeis maisum copo de madeira. (bebem). levais de certo alguma preciosidade na mala? (sorri-se).
macário
sim.
o desconhecido
dinheiro?
macário
não, mas...
o desconhecido
a coleção completa de vossas cartas de namoro, alguma poesia em borrão, alguma carta de recomendação?
macário
nem isso nem aquilo... levo...
o desconhecido
a mala não pareceu-me muito cheia. senti alguma coisa sacolejar dentro. alguma garrafa de vinho?
macário
não! não! mil vezes não! não concebeis, uma perda imensa, irreparável... era meu cachimbo.
o desconhecido
fumais?
macário
perguntais de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite sem mulher - não me pergunteis se fumo!
o desconhecido
eis aí um cachimbo primoroso. é de pura escuma do mar. o tubo é de pau de cereja. o bocal é de âmbar.
macário
bofé! uma sultana o fumaria! e fumo?
o desconhecido
é uma invenção nova. dispensa-o. acendei-o na vela. (macário acende).
macário
e vós?
o desconhecido
não vos importeis comigo. (tira outro cachimbo e fuma).
macário
sois um perfeito companheiro de viagem. vosso nome?
o desconhecido
perguntei-vos o vosso?
macário
o caso é que é preciso que eu pergunte primeiro. pois sou um estudante. vadio ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa. duas palavras só: amo o fumo e odeio o direito romano. amo as mulheres e odeio o romantismo.
o desconhecido
tocai! sois um digno rapaz. (apertam a mão).
macário
gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo que do soneto mais harmonioso. quanto ao canto dos passarinhos, ao luar sonolento, às noites límpidas, acho isso sumamente insípido. os passarinhos sabem só uma cantiga. o luar é sempre o mesmo. esse mundo é monótono a fazer morrer de sono.
o desconhecido
e a poesia?
macário
enquanto era a moeda de oiro que corria só pela mão do rico, ia muito bem. hoje trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo, nem caixeiro de taverna que não tenha esse vintém azinhavrado. entendeis-me?
o desconhecido
entendo. a poesia, de popular tornou-se vulgar e comum. antigamente faziam-na para o povo; hoje o povo a faz... para ninguém...
macário (bebe)
eu vos dizia pois... onde tínhamos ficado?
o desconhecido
não sei. parece que falávamos sobre o papa.
macário
não sei: creio que o vosso vinho subiu-me à cabeça. puah! vosso cachimbo tem sarro que tresanda!
o desconhecido
sois triste, moço... palavra que eu desejaria ver essa poesia vossa.
macário
porque?
o desconhecido
porque haviade ser alegre como arlequim assistindo a seu enterro...
macário
poesias a quê?
macário - álvares de azevedo - primeira parte

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