domingo, 7 de novembro de 2010

urgência das ruas - coletivo baderna pdf

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ANTES DE TUDO...
Este livro não é sobre o "movimento antiglobalização". Tal movimento foi criado
na tela da 1V e nas colunas dos jornais burgueses. Infelizmente, cada vez mais pessoas
que têm protestado nas ruas do mundo estão assumindo essa identidade forjada pela
mídia, delegando assim explicitamente esse poder a ela. A definição dos próprios
termos da discussão, impondo assim limites a uma suposta dissidência, é o próprio
diagnóstico da saúde de qualquer relação de poder.
Ele também não pretende ser um retrato totalizante dos grupos e pessoas - seus
pensamentos e formas de ação - que têm ocupado as ruas de Seattle, Washington d.C.,
Londres, Praga, Quebec, Gênova... Apreender tamanha diversidade exigiria uma
enciclopédia e não apenas um volume, se é que tal empreendimento é possível.
Reduzir a complexidade da vida transformando-a em produto para o consumo de
espectadores é a especialidade da mídia. Deixemos esse trabalho sujo a ela.
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Urgência das Ruas
O fenômeno das manifestações-bloqueio em encontros dos gestores do
capitalismo internacional, ou mais genericamente os Dias de Ação Global, que têm
impedido e perturbado as reuniões de instituições reguladoras do capitalismo global -
como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial (BM), o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) - nos países da Europa e da América do Norte, gerando verdadeiras batalhas
nas ruas, tem sido um fator importante de deslegitimação, senão das instituições
capitalistas como' um todo, ao menos do pensamento econômico neoclássico que tem
pautado de forma absolutista as políticas ditadas pelo BM, FMI, OMC, BID.
A partir desse processo de deslegitimação da vertente neoliberal do capitalismo,
a contestação praticada nas ruas, organizada basicamente por grupos de afinidade de
forma autogestionária, isto é, não-hierárquica, não-burocrática e autônoma,
naturalmente tenta ser capitalizada na forma de dividendos políticos pela esquerda
capitalista: representada por ONGs (Organizações NãoGovernamentais) e partidos que
buscam maior espaço na gestão do capitalismo. Afinal, transformar os impulsos de
revolta contra a sociedade instituída em simples reivindicações compatíveis com o
imaginário instituinte da sociedade capitalista sempre foi a prática da esquerda
institucionalizada.
De qualquer forma, o fato é que uma resistência anticapitalista e antiautoritária
tomou com força nessa virada de milênio os palcos das ruas da Europa e da América
do Norte. Esse tom anticapitalista e libertário que anima os Dias de Ação Global e as
manifestações-bloqueio - nascido das selvas de Chiapas (México), da música
verdadeiramente underground (não de Rage Against The Machine como gostam de
citar os jornais burgueses), de raves, de squats1 e infoshops anarquistas - ao mesmo
tempo que é por demais evidente e enormemente significativo, tende a ser desprezado
e preterido cada vez mais pela mídia e pelos capitalistas de esquerda, o que não
poderia deixar de ser diferente. Qual será o espaço reservado para esses anticapitalistas
e antiestatistas na história oficial? Serão eles engolidos nessa massa uniforme que
chamam “movimento antiglobalização”, "povos de Seattle" ou "povo de Porto
1 Casas ou prédios abandonados, que são transformados em locais de moradia e centros culturais e
sociais. (N.T.)
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Urgência das Ruas
Alegre?” E suas energias serão relembradas como se tivessem sido postas a serviço do
cancelamento da dívida do terceiro mundo, da taxação do capital financeiro ou do
orçamento participativo municipal? Servirão os "radicais" libertários de bucha de
canhão e tropa de choque para o ganho político dos capitalistas de esquerda? A
resposta será dada também pela capacidade de articulação e estruturação dessa
resistência anticapitalista e libertária.
Os textos apresentados aqui formam uma coletânea de relatos, comunicados,
artigos e entrevistas de participantes de "grupos" anticapitalistas e antiautoritários com
presença ativa, importante, destacada, e muitas vezes polêmica, nas manifestaçõesbloqueio
e nos Dias de Ação Global. Além de apresentar, documentar e difundir as
idéias e as práticas destes grupos anticapitalistas, os textos coletados buscam contar
um pouco da participação e das idéias de dois deles em especial: o carnavalesco
Rec1aim The Streets inglês, e os "malditos" Black Blocks.
Surgido na Inglaterra no início dos anos 90 a partir da luta antiestradas, uma das
características do Rec1aim The Streets (RTS) tem sido uma auto crítica severa, algo
realmente inspirado r e não muito comum, seja em indivíduos ou coletividades, o que
dá ao RTS a propriedade de estar sempre em movimento, procurando cobrir suas
insuficiências e encontrar as práticas adequadas para suplantar o capitalismo em prol
de sua visão de sociedade ecológica, comunista e libertária. Grande parte dos textos
produzidos e publicados pelo RTS são auto críticos, sendo que o leitor encontrará aqui
uma amostra deles. Essa reflexividade e autocrítica talvez tenham sido o motivo que
levou o RTS a reduzir sua iniciativa na organização e divulgação de Dias de Ação
Global Contra o Capitalismo ao longo do tempo. O RTS inglês foi inicialmente o
principal impulsionador na Europa, e talvez no mundo, do mecanismo de coordenação
de movimentos sociais chamado Ação Global dos Povos (AGP). Foi também ele um
dos grandes impulsionadores dos primeiros Dias de Ação Global. Sua auto crítica logo
o levou a compreender a limitação da prática do Dia de Ação Global, e provavelmente
já o fez dividir mais sua energia, caminhando por outros rumos. A diminuição do
protagonismo exibido pelo RTS inglês pode ser percebido ao longo dessa coletânea,
através da diminuição da própria produção de artigos pelo RTS concernentes aos Dias
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Urgência das Ruas
de Ação Global no decorrer do tempo.
Enquanto o RTS, os Black Blocks e os imensos e organizados distúrbios que
acompanham as tentativas de encontro dos gestores do capitalismo mundial têm sido
um fenômeno essencialmente do Norte (EUA, Canadá e Europa), algumas questões e
polêmicas levantadas em tomo dessas ações, e do Black Block em especial, não são
novas e concernem também ao Sul.
Muito provavelmente os manifestantes que formam os Black Blocks estão 'entre
os que menos nutrem ilusões em relação à natureza do capitalismo e do Estado, mesmo
em sua feição democrática. Seus métodos e práticas exprimem de alguma forma essa
percepção, e, coincidentemente ou não, recebem por isso a pecha de "violentos" tanto
pela mídia quanto por ONGs, partidos políticos, capitalistas de esquerda e de direita,
liberais, sejam eles também manifestantes ou não.
Certamente categorias tão carregadas de peso moral como violência e nãoviolência
têm tudo para se tomarem artifício retórico reacionário no contexto de
levantes populares. Todas as "greves selvagens" e insurreições populares, dos
communards aos zapatistas, sempre foram pelo menos em algum momento - até
quando os defensores da ordem estabelecida puderam sustentar seus discursos -
descritas como irrupções de violência, na tentativa de isolá-Ias, criminalizá-Ias e
desqualificá-Ias moralmente. Se levarmos em conta que as ações dos Black Blocks
nessas manifestações-bloqueio feriram sem gravidade no máximo apenas alguns
poucos policiais, enquanto milhares de manifestantes saíram feridos pelas investidas
policiais, tachá-Ios de "violentos" deveria ser algo RTSível, que só demonstra o quanto
àqueles que assim os rotulam ainda se encontram imersos e devedores da moral e da
ordem burguesa.
Com certeza não se deve deixar de criticar ou discordar das ações dos Black
Blocks com base em aspectos táticos ou de efetividade, caso a caso, mas o simples
apelo à categoria moral violência, quando se está a enfrentar a força repressiva do
Estado, faz tanto sentido quanto atirar balas de borracha neles ou prendêlos. Ou seja,
só faz sentido, só é racional, para aqueles que consciente ou inconscientemente
defendem a ordem instituída e a vida miserável naturalizada no capitalismo.
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Urgência das Ruas
Dessa forma, os Black Blocks têm levantado e explicitado certos conflitos que
aparecem também no Sul, onde muito freqüentemente os burocratas de esquerda são
os primeiros a isolar, criminalizar e condenar indiscriminadamente as "minorias
violentas", os "provocadores", aqueles que "não têm nada a dizer". E nem sequer são
capazes de reconhecer um fato que deveria ser lugar-comum, expressado nas palavras
de um manifestante durante a reunião do G-8 em Gênova (Itália):
"Nenhum político e nenhum grande banqueiro ficará impressionado com 500 mil
manifestantes pacíficos, uma vez que não haja dúvida de que eles irão permanecer
não-violentos todo o tempo. Somente a possibilidade de radicalização toma um
movimento ameaçador e por conseqüência forte".
Embora o manifestante tenha utilizado a categoria não-violência (o que implicou
a atribuição implícita da categoria violência aos "radicais") - que como o leitor notará
é muitas vezes utilizada infelizmente também por indivíduos que formam os Black
Blocks -, a afirmação acima expõe sublinearmente dois conceitos que, além de não
carregarem o peso moral da categoria violência, são muito mais explicativos dos reais
pontos de conflito que opõem de um lado "radicais" (adeptos ou não das práticas do
Black Block) e do outro aqueles que os condenam e criminalizam com base em
preceitos morais. São eles controle e disciplina.
É notório que os avanços sociais, mesmo as reformas, são sempre conseguidos
devido à ação das massas, pela pressão da revolta, ao contrário do que os "socialistas"
parlamentaRTStas induzem a pensar. A própria reforma agrária impulsionada pela
ação direta dos sem-terra no Brasil demonstra isso.
A questão que se coloca é por que sempre foi preciso a "agitação das massas"
para que os donos do poder cedam, para que sintam alguma ameaça? Em outras
palavras: o que na "agitação das massas" traz um medo ao status quo causando-lhe
uma pressão que a expressão verbal, entre outras, não causa?
A resposta a esta pergunta pode nos ajudar a responder por que 5 mil indivíduos
de grupos de afinidade tomando determinada forma de ação causaram maior impacto e
provavelmente maior pressão ao status quo do que 60 mil sindicalistas e ONGs em
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Urgência das Ruas
marchas, palestras e discursos em Seattle (EUA).
Foucault salientava que a disciplina que mantém e define um determinado
ordenamento social é uma técnica de operação sobre os corpos de modo a obter um
resultado concreto. A disciplina dos corpos exprime a estabilidade de um sistema.
Uma sala de aula só "funciona" porque os corpos dos alunos, isto é, os alunos, estão
disciplinados a se disporem de uma determinada maneira. E assim é em todos os
espaço-tempos na sociedade, de um teatro, passando por um exército, um show de
rock ou a locomoção pelas ruas.
A indisciplina do corpo em um determinado espaço-tempo, ordenado sob uma
disciplina específica, pode levar o sujeito muitas vezes à pRTSão ou ao hospício. O
"delito" e a "loucura" são algumas das criações que a nossa sociedade reservou para os
corpos indisciplinados.
Manifestantes que transformam seus corpos em catapultas, que atiram pedras em
barreiras num espaço que exige uma outra disciplina (ou uma disciplina), quebrando a
rotina e a tranqüilidade dos que dirigem e comandam a economia e a política, demonstram
(pelo menos em certo período e espaço) a ausência daquilo que mantém as
coisas em ordem e o capitalismo em vigor: a disciplina. As ruas não são o local
determinado no capitalismo para corpos atirarem pedras e nem serem barricadas, e não
são o local para enfrentamentos econômicos e políticos: as mesas de "negociações" e o
parlamento são os espaços na nossa sociedade para isso. O sinal dado aos homens no
poder por esta autoorganizada indisciplina em massa, a "agitação das massas", é de
que as pessoas começam a não se posicionar mais nos lugares estabelecidos e a não se
comportar mais do modo necessário para a continuidade do sistema, por motivo de um
desejo, aspiração ou reivindicação. O sinal dado pela indisciplina em massa, que
enfrenta o delito e a loucura (a marginalidade), assusta e pressiona muito mais os que
estão no poder do que outras formas de manifestação, por ser já um rompimento com a
disciplina do sistema, antecipando a imagem de um rompimento total.
Cinqüenta mil disciplinados manifestantes podem por isso ter menos peso em
uma pressão e ameaça aos dirigentes do que 5 mil indisciplinados e desobedientes.
Setecentas mil vozes gritando nas ruas pode ser pouco como instrumento de força,
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amedrontamento e pressão aos que estão no poder: se estes que estão no poder
continuam com a convicção de que eles não são capazes de romper com a disciplina da
democracia burguesa-liberal. Quinhentos bem organizados indisciplinados já podem
ser uma amos tra de que a disciplina das massas começa a ser quebrada e o jogo
começa a ser de fato, de alma e de corpo, questionado.
Em última instância, o controle garante a "não-radicalização" e a disciplina das
massas. Mas quem exerce o controle? Seria um engano achar que são apenas os
aparelhos juridico-repressivos do Estado, quando historicamente esse controle tem
sido exercido também por sindicatos verticalizados e partidos políticos de esquerda,
entre outros. Controle este que é muitas vezes exercido de forma sutil e invisível,
através da tentativa de isolamento e condenação dos "radicais" em nome de uma
suposta imagem a ser preservada (quando na realidade o que parece estar em jogo é a
preservação da ordem burguesa). Como se a "revolução" fosse ter uma bonita imagem
na TV e nas publicações burguesas!
Ademais é preciso salientar que a intenção dessa coletânea não é de modo algum
fazer uma apologia desses "grupos" anticapitalistas e suas práticas. As palavras e a
história estão escritas para servirem de inspiração tanto quanto para serem criticadas,
modificadas e superadas. As possíveis contradições, divergências e inconsistências que
o leitor poderá encontrar em meio aos textos, espelham a independência,
autodeterminação e iniciativa própria dos indivíduos que os escreveram, pessoas comuns,
e não arautos de uma ideologia, partido ou organização totalitária qualquer.
Uma vez que os Reclaim The Streets e os Black Blocks são formações voltadas à
ação e não à produção teórica - podendo até mesmo serem compreendidos como
formas de ação nas ruas -, os artigos e declarações produzidos por seus integrantes
perdem o sentido se destacados das próprias ações a que se referem. Por esse motivo
este livro possui também o caráter de relato histórico e cronológico dos Dias de Ação
Global desde sua gênese no início de 1998.
Para o leitor que achar poucas as citações nos textos e lastimar uma ausência de
aprofundamento filosófico neles, poderáencontrar a fonte do pensamento político
desses "grupos" em nomes como Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin, Emma Goldman,
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Alexandre Berkman, Guy Debord, Raoul Vaneigem, Murray Bookchin, Hakim Bey,
Ivan Illich e muitos outros que se inserem dentro do espectro anticapitalista e
antiautoritário.
Os ciberativistas e os hacktivistas estão deliberadamente ausentes dessa
coletânea, embora essas ações globais tenham tido uma participação significativa
deles.
A reação instrumentalizada - através dos serviços repressivos e de inteligência
estatais e supra-estatais aos contestadores que têm tomado as ruas durante essas
cimeiras políticas - daria com certeza um livro à parte. Assim como as violações e
atrocidades cometidas pelas amigáveis polícias dos Estados democráticos do primeiro
mundo.
Por fim, como eu dizia, esse livro não é sobre o .movimento antiglobalização.,
mas sobre a revolta e o desejo que ocupam as ruas, interrompendo a circulação dos
carros, dos cosméticos, da força de trabalho, dos antidepressivos, dos delivery fastfoods
e dos gestores de tudo isso. Dedicado a todas as atitudes visfveis e invisíveis que
representam um outro mundo, pautado pelo amor mútuo, solidariedade, liberdade e
autogestão, e em especial àqueles que estão presos em conseqüência de suas ações, e a
todos aqueles e aquelas, que como ChRTS Fisch2, carregarão seqüelas os restos de
suas vidas devido às violências a que foram submetidos pela polícia, e obviamente à
memória dos que foram mortos por quererem mudar o mundo.
Ned Ludd
2001

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